Por Nicola Calicchio e Marcus Frank
Três bilhões de pessoas. Esse é o aumento esperado na população mundial nas próximas duas décadas, o que elevará ainda mais a competição por um dos recursos mais importantes para a humanidade, a água. Mantido o padrão atual de consumo, a demanda global por água será 40% maior que a oferta em apenas vinte anos. Ainda há tempo para corrigir o curso desse rio, e grande parte da solução está em usar melhor a água que temos.
Cinco anos atrás, a McKinsey realizou extensa pesquisa sobre água em todo o mundo, no qual indicava, por exemplo, que faltaria água na região Sudeste – e isso, independentemente de fatores externos, como a seca severa e sem paralelo dos últimos anos. Em nosso caso, houve avanços, mas, claramente, como qualquer cidadão pode atestar, foram insuficientes.
Crises hídricas não são um problema restrito ao Brasil, mas algo global, afetando cada vez mais países, em todos os continentes. Na Índia, a expectativa é de déficit hídrico de 50% em 2030, alimentado pela combinação de baixa produtividade na agricultura e infraestrutura hídrica obsoleta. O problema é semelhante na Austrália, embora as causas sejam distintas. As torneiras ficarão mais secas no país mais desenvolvido do hemisfério Sul por conta de sua distribuição geográfica: boa parte da agricultura e população urbana do país está em áreas onde os recursos hídricos são mais escassos. Essa disposição impõe dificuldades enormes para se atender a demanda.
O ritmo atual de melhoria da gestão da água e de crescimento da oferta não é suficiente para solucionar o problema que temos. Mantendo as tendências históricas, ainda faltará um quarto da necessidade de água do mundo em 2030.
A situação no Brasil é particularmente complexa. Os próprios atributos do país muitas vezes levam a uma percepção equivocada de seu cenário. O Brasil é realmente rico em água, especialmente na Amazônia, onde está a maior bacia hidrográfica do mundo. Ainda assim, esse recurso não está disponível em termos práticos: não é economicamente viável nem ambientalmente sustentável bombear essa água por milhares de quilômetros para abastecer as regiões mais povoadas do país. Por seu posicionamento e em nome da preservação, essa reserva não é utilizável.
Resta, portanto, abastecer as cidades com fontes próximas, com um limite de oferta do qual o país se aproxima rapidamente. No Sudeste, a crise hídrica levou a uma disputa entre São Paulo e Rio de Janeiro pela já escassa água do rio Paraíba do Sul, numa espécie de prelúdio de conflitos que podem se tornar cada vez mais comuns.
A forte seca de 2013 e 2014 mostra que fatores externos têm um peso significativo sobre o equilíbrio entre oferta e demanda, e representa um risco praticamente impossível de ser previsto. Mais do que isso, há estudos que mostram que regimes secos como esses podem se tornar a regra, não a exceção, por conta do desmatamento acelerado da Amazônia.
Em praticamente todo o planeta, a faixa entre as latitudes 15° e 25° Sul compreende áreas desérticas ou secas. Uma das poucas exceções é o Brasil. Essa faixa no país, que coincide com boa parte do Sudeste, que é mais chuvosa graças à umidade da Amazônia que, sem conseguir atravessar os Andes, se transforma em chuva nessa região. Com o desmatamento, porém, a evaporação diminui e as chuvas diminuem.
A seca dos últimos anos, independentemente da causa, porém, deixou claro que os esforços de prevenção não foram suficientes, e as reservas chegaram a níveis alarmantes, exigindo medidas radicais, de urgência, sem planejamento e com impactos negativos para a população. Em parte, a complacência com a prevenção vem da ilusão de abundância de água no país. Essa ilusão também explica o nível relativamente baixo de importância que se dá ao combate ao desperdício. Hoje, 37% da água tratada para consumo no Brasil é perdida durante a distribuição, antes mesmo de chegar às torneiras da população.
São Paulo é um estado que hoje paga preço alto pelas perdas na distribuição de água. Considerando a capacidade total do Sistema Cantareira (com toda água do volume morto), de 1,27 trilhão de litros, cerca de 420 bilhões de litros dessa reserva se perdem antes de chegar ao consumidor – volume comparável à capacidade total do Sistema Alto Tietê, de 573,8 bilhões de litros de água.
A existência de dificuldades hídricas em países com diferentes realidades sociais e econômicas demonstra os enormes desafios para resolver a questão da água no mundo. Mais importante, deixa claro que não existe apenas uma solução. A McKinsey identificou mais de 90 medidas específicas que se combinam em inúmeros pacotes de medidas para enfrentar o problema.
A escolha da solução ideal para cada país e região está intimamente ligada às suas particularidades. Entretanto, aumentar a produtividade e reduzir o desperdício são, na maioria dos casos, as soluções mais baratas e eficientes. A diminuição de vazamentos e maior reciclagem são melhores alternativas que dessalinização da água do mar ou transferências do recurso por longas distâncias. Entretanto, as discussões públicas no mundo costumam girar mais torno de medidas sobre aumento de oferta da água do que melhoria de gestão.
Para o caso da região Sudeste do Brasil, uma solução baseada em melhorias na eficiência no uso da água custaria quase a metade que em iniciativas exclusivamente voltadas para o aumento do fornecimento. A crise hídrica forçou o estado de São Paulo a melhorar a gestão do recurso, uma vez que se viu sem fontes adicionais para elevar a oferta. Exemplo da nova abordagem em relação à questão é a ligação de 6km aberta pela Sabesp entre uma petroquímica e uma de suas unidades de tratamento que a permitirá elevar a taxa de reuso da água.
Ainda que seja necessário considerar as características locais específicas, é possível, aprender com exemplos do exterior. A Austrália conduziu uma série de reformas que melhorou a gestão da água e reduziram o consumo médio em 22%. Em paralelo, o país criou um mercado interestadual de água e estimulou a disseminação de conhecimentos sobre boas práticas agrícolas, para otimizar o uso do recurso por seus produtores.
Israel, país desértico com apenas uma fonte de água, por necessidade se tornou líder mundial em termos de reciclagem. Hoje, 75% da água é reutilizada no país.
Mesmo países em desenvolvimento têm a ensinar. A capital da Namíbia, Windhoek, fica em região desértica e com fontes limitadas de água. Iniciativas para melhorar o controle de vazamentos na rede de tubulações e o monitoramento mais detalhado do sistema ajudaram a reduzir significativamente as taxas de desperdício. A cidade perde apenas 10% de sua água na distribuição, o melhor índice do sul da África e comparável às melhores marcas mundiais.
Qualquer iniciativa positiva no Brasil, porém, esbarra num problema cultural, também derivado da ilusão sobre a abundância de água no país. Práticas como a de lavar calçadas com água, por exemplo, são impensáveis em outros países. A região Sudeste, mais afetada pela crise hídrica, tem um consumo per capita de água de 194 litros por dia, 23% menos que o da região Sul, com consumo médio de 149 litros por pessoa por dia.
A escassez de água é uma ameaça iminente que, se ignorada, afetará o bem-estar de toda a humanidade. A gestão inteligente e eficiente da água deve ser uma prioridade global – assim como uma mudança cultural, no caso do Brasil.
A cidade do Rio de Janeiro, segunda maior do país, por exemplo, conta com apenas uma fonte de fornecimento de água, a bacia do Rio Guandu. Qualquer acidente ambiental que venha a contaminar o manancial pode deixar a cidade sem água em poucos dias.
Conflitos armados como os que temos hoje pelo controle do petróleo podem, no futuro, se repetir pelo controle da água, caso o problema não seja equacionado. O desafio é complexo, mas não insolúvel. Planejamento, conhecimento prévio das dificuldades e análise criteriosa para decidir pelas medidas mais indicadas são o caminho para garantir água nas torneiras de todos.
*Nicola Calicchio é diretor-presidente da McKinsey América Latina e Marcus Frank é consultor sênior da McKinsey em São Paulo